Seminário debate desinformação e o futuro da democracia

Quinto evento da série "Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030" discutiu o avanço do autoritarismo e as formas de fortalecer a democracia

02 de dez de 2020

Crédito: Reprodução/Inovagov

Por Aline Souza (Instituto Democracia e Sustentabilidade), com a colaboração de Danilo Mekari (ICLEI América do Sul) e Karol Coelho (Programa Cidades Sustentáveis)

 

O quinto e último seminário da série “Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030” aconteceu nos dias 24, 25 e 26 de novembro e teve como foco a democracia brasileira e as possibilidades de avanços na participação social relacionada à tomada de decisões em políticas públicas nos governos locais.

 

Os especialistas foram convidados a refletir sobre a temática central: “Participação cidadã e transparência nos governos locais: descentralização do poder e fortalecimento da Democracia”, levando em consideração o contexto atual das eleições municipais e os desafios colocados não só em função da pandemia em si, mas do acirramento das desigualdades em todo país.

 

Como incluir a sociedade nas tomadas de decisões que afetam a todos? Como incluir na gestão municipal estratégias de promoção da sustentabilidade socioambiental? Em que medida uma sociedade tão polarizada e manipulada por desinformação é capaz de construir consensos em torno de pautas mais democráticas alicerçadas em justiça social?

 

No primeiro dia, os meios e instrumentos de participação social direta com foco em defesa de direitos constitucionais, orçamento público e temas ambientais foram debatidos pelos convidados Pedro de Lima Marin, coordenador do Programa de Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setubal; Rayana Burgos, cientista política e pesquisadora de temas como gênero, eleições e política climática e Rosana Boullosa, arquiteta, urbanista e professora da Universidade de Brasília, com a mediação de Jorge Abrahão (coordenador da Rede Nossa São Paulo).

 

A professora da UnB, Rosana Boullosa, abordou nossos instrumentos de participação social em nível federal e levantou questionamento sobre o motivo dos instrumentos de participação direta, como referendo e plebiscito, não serem implementados na sua totalidade no Brasil. Ela explica que, no início, não havia estrutura de conferência das assinaturas dos cidadãos e cidadãs nas petições, e ainda hoje as iniciativas populares dependem de “apadrinhamento” de deputados para serem aprovadas.

 

Será que esses instrumentos existem para funcionar? Será que de fato é um problema de educação do povo brasileiro? Ou são previstos para não serem utilizados? “Temos um fetiche de criar instrumentos de participação pública a cada momento. É necessário formar público para dar suporte a estes instrumentos. A ideia de construção de espaços não é a mesma de construção de público. E o público não é sempre igual, o conhecimento é situado, ele se concretiza nas localidades, por isso os modos, mecanismos e formas que os sujeitos vivenciam o poder público são diferentes entre si”, afirma. “Olhar o público como homogêneo não é nada democrático, nós não somos legalidade, somos uma prática social”, disse Rosana.

 

Pedro de Lima Marin apresentou o exemplo do programa de metas (Re)age SP, lançado pela Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, que estabelece 50 metas para temas urgentes à população, baseadas em planos setoriais já existentes e aprovados, a serem cumpridas no longo prazo. Ele acredita que isso fortalece as instâncias municipais e gera responsabilidade nos agentes públicos.

 

“Só planejar não adianta e é necessário trazer as pessoas para a decisão, para refletirem juntos o que é prioridade”, afirmou. O (Re)age SP está ancorado na Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas), que prevê compromissos multissetoriais de desenvolvimento sustentável em nível global para a redução das desigualdades, conjuntamente ao enfrentamento às mudanças do clima.

 

A cientista política Rayana Burgos provocou o público ao dizer que o termo “justiça climática” significa que a crise do clima não afeta da mesma forma as pessoas em vulnerabilidade social. “Como pedir que elas participem de uma democracia participativa se elas estão descrentes desse processo?”, perguntou. Para ela, é fundamental o papel dos gestores públicos, das empresas e da sociedade civil que dita o caminho que vamos seguir, de modo a integrar cada vez mais a sociedade como um todo.

 

Diante da reflexão sobre o distanciamento entre a população e a gestão pública, ela avalia que é possível criar aproximação. “Devemos trabalhar esse sentimento de apatia e não pertencimento à política de diversas formas, inclusive por meio da tecnologia, que nos possibilita abordar pessoas que até então a gente não abordaria. Para exigir que a população tenha uma participação na construção do município, ela precisa saber o que estamos discutindo. Atualmente não há a prática de democratizar a informação no sentido de fazer com que qualquer pessoa possa entender o que está sendo discutido/decidido. Daqui para frente nossa democracia vai ter que andar de mãos dadas com a as práticas sustentáveis”, conta Burgos.

 

No segundo dia de debates (25/11) foi discutido um tema bastante atual e urgente: o meio digital e os riscos e benefícios que ele traz para a democracia e a sustentabilidade, com foco em fake news, jornalismo no século XXI, transparência e governo aberto.

 

Foi um debate dominado por vozes femininas que teve Fernanda Campagnucci, especializada em projetos de inovação e governo aberto; Bia Barbosa, representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil e integrante do Coletivo Intervozes; e Natalia Viana, jornalista de direitos humanos da Agência Pública. A mediação foi de Paula Oda, coordenadora de projetos do Instituto Ethos.

 

Campagnucci acredita que essa discussão envolvendo os meios digitais e o uso deles nas democracias, que é algo recente e bastante complexo no plano nacional, se torna ainda mais desafiadora quando posta a nível municipal. “Enfrentamos um deserto de dados sobre as mais variadas frentes de políticas públicas, apesar de a LAI – Lei de Acesso à Informação estar completando 10 anos de existência no Brasil, o que sem dúvida devemos celebrar”, afirmou.

 

Ela ressalta que a LAI é uma medida estruturante para as pessoas participarem da vida pública e acessarem outros direitos. “Os discursos autoritários querem se sobrepor, por isso é preciso pensar em uma infraestrutura digital permeável à participação, fortalecendo a dimensão do acesso aos dados públicos por meio das ferramentas digitais”, disse Fernanda.

 

Bia Barbosa iniciou sua fala lembrando que o uso do ambiente digital para aprofundar a democracia precisa lidar com o fato de que 30% da população no Brasil não possui acesso à internet e quando possui, a conexão não tem qualidade. “A pandemia jogou luz a esse problema e as camadas mais pobres da população não conseguem ter educação e trabalho à distância sem esse recurso”, pondera a jornalista.

 

“A falta de acesso à internet viola os direitos e impede o processo de participação social que se apropria imensamente dos recursos digitais hoje em dia”. Barbosa expôs ainda uma preocupação com o uso de dados para definição de políticas públicas de saúde e educação, e lembrou que em países autoritários esses dados podem alimentar até mesmo sistemas de segurança. “O uso massivo dos nossos dados digitais e rastreamento dos nossos passos nesse ambiente é um risco para a democracia e participação social que precisa ser fiscalizado”, observa.

 

“A arquitetura dessas grandes plataformas digitais precisa passar por um debate de regulação democrática para combater a desinformação e para que o espaço da internet possa de fato ser universal já que colabora para ação cidadã”, disse.

 

Para Natalia Viana, ao se eximirem de modular os conteúdos que estão sendo publicados em suas plataformas, as grandes empresas de tecnologia digital fingem que não são responsáveis por eles. “O debate sobre a regulação das plataformas digitais é urgente, impacta a democracia e está avançando no mundo todo”, afirma a jornalista.

 

De acordo com ela, estamos vivendo uma era do capitalismo de vigilância onde o comando geral para fomentar a prática de desinformação é: ataquem os jornalistas! “Portanto, defender atores relevantes da democracia que estão sob ataque – os partidos, a política, os políticos, as instituições, a sociedade civil, as ONGs, os conselhos populares, a imprensa – a gente precisa defender a causa desses atores. A participação e os instrumentos dela precisam vencer o descrédito geral”, disse uma das fundadoras da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

 

Finalizando a programação (26/11) o debate foi sobre o negacionismo e a retração democrática, estratégias para promoção da sustentabilidade e da democracia. Foram convidados grandes pensadores da atual conjuntura política, social e climática do Brasil e do mundo, uma vez que não dá para pensar a democracia sem a sustentabilidade. Conversamos com André Palhano, jornalista especializado em economia e idealizador da Virada Sustentável; Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (ICS), economista e doutora em ciência política e Pedro Abramovay, diretor regional para América Latina e Caribe da Open Society Foundations, doutor em ciência política. A mediação foi de Ricardo Young, presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

 

O avanço das práticas autoritárias no mundo foi o ponto principal da reflexão de Pedro Abramovay, que também apontou um caminho possível para vencer as ideias polarizadas e paralisantes por meio do entendimento de um espírito público comum. Para ele, o poder local dos municípios do Brasil e as políticas do micro fazem muita diferença para nossa comunidade política no macro. “No momento atual, o poder não é tomado por golpes, tanques na rua. Quase sempre é um fechamento lento dos regimes democráticos. O novo autoritarismo no mundo se configura com limites que vão sendo testados e essa é uma cartilha seguida por todos. O que nos une é que estamos em uma comunidade política e nossas decisões de futuro afetam a todos. A troca e a conversa são fundamentais em um ambiente democrático. Um futuro comum é decido com uma conversa comum. Mas como fazer isso em um cenário segmentado, pulverizado e polarizado? A ideia de comunidade política precisa ser resgatada”, afirmou.

 

André Palhano apontou um problema que é da ordem informacional de nossa população e refletiu sobre como estamos conduzindo a comunicação de modo a gerar consciência coletiva para os temas urgentes envolvendo a natureza e o meio ambiente. “É impressionante como ainda não conseguimos levar e ampliar a base de informação acerca das mudanças climáticas para o resto da população. A sustentabilidade ainda é ligada apenas às questões ambientais, porém é um conceito muito mais amplo que isso”, disse o jornalista criador da Virada Sustentável.

 

“Estamos quase sempre reforçando mitos e falsos dilemas entre campo e sustentabilidade ou desenvolvimento econômico e preservação ambiental, as mudanças climáticas e as resiliência das cidades para uma adaptação é ausente no debate público municipal. Precisamos realmente desenvolver a ideia de comunidade política e de estamos no mesmo barco, que o planeta é um e que as fronteiras mundiais e a competição capitalista precisa cair por terra, pois é um pensamento que nos atrasa e nos destrói”.

 

Já para Ana Toni, existe um ponto central em todo esse debate que é: por que os novos autoritarismos elegeram a sustentabilidade como inimiga? Talvez seja porque ela tem o bem comum como premissa e a coletividade como um valor fundamental. “A relação humanidade e natureza é uma relação (troca), não deveria ser uma dominação, como tem sido. Por esse motivo esses valores estão sendo atacados, pois vão de encontro a tudo que se prega no autoritarismo”, afirmou.

 

Além disso, ela se recorda de algo que foi fatal para chegarmos ao atual momento. “Em 1992 havia a disputa de desenvolvimento versus meio ambiente, encontramos então um tripé para lidar com os desafios: meio ambiente, a economia e o social. Mas esquecemos da política. E agora estamos pagando o preço desse erro. O envolvimento político é necessário, como qualquer disputa de agenda democrática”. E agora é nosso dever resistir, segundo ela. “Os limites da natureza estão dados, é físico. A questão não é ‘se’ mas ‘como’ vamos lidar com as mudanças climáticas. O futuro comum depende disso”, concluiu.

 

A série de seminários “Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030” encerra suas atividades com o propósito de levantar as principais contribuições feitas ao longo do ano de 2020 e compilar esses caminhos e propostas em uma publicação a ser lançada em 2021 em um evento inspirador, a ser divulgado em breve.

 

Enquanto isso, já estão disponíveis os materiais produzidos a partir de todos os debates com especialistas. Também é possível rever todas as mesas de debate no YouTube.

 

Esta é uma realização do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP), ICLEI América do Sul, Instituto Ethos e Programa Cidades Sustentáveis.