Por Aline Souza (Instituto Democracia e Sustentabilidade), com a colaboração de Danilo Mekari (ICLEI América do Sul) e Karol Coelho (Programa Cidades Sustentáveis)
O IV seminário da série “Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030” realizou debates virtuais nos dias 28, 29 e 30 de setembro para refletir junto com pesquisadores convidados sobre a gestão integrada e sustentável dos nossos entes federados tendo como ponto norteador a busca pela cooperação entre eles e seus desafios.
O objetivo dessa iniciativa idealizada pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP), ICLEI América do Sul, Instituto Ethos e Programa Cidades Sustentáveis é lançar um olhar crítico sobre o nosso federalismo brasileiro, compreender quais são os entraves da nossa governança política de modo indissociável de um projeto de país que precisa ser cada vez mais sustentável.
O tema do IV seminário foi Federalismo e Cooperação: Desafios da gestão integrada e sustentável e no dia 28 o foco de discussão foi a “Governança interfederativa, colaboração e compartilhamento de responsabilidades”. Mila Batista, Diretora-geral da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, disse que no contexto da pandemia a pertinência do tema escolhido ficou bastante evidenciado, principalmente no que tange os aspectos do entendimento comum sobre quais medidas adotar para lidar com esse momento tão desafiador para os municípios. “O isolamento social não foi consenso entre os municípios da Região Metropolitana de BH, por exemplo, que tem limites quase simbólicos. O entendimento de uma gestão municipal diverge da outra com pandemia ou não”, contou.
Nesse sentido, Mila mostrou em sua fala que nosso modelo de governança tem uma engrenagem com alguns entraves desde 1988, quando os municípios foram alçados à condição de entes federados, passando a receber uma carteira de competências que antes não possuíam, algo que significa um bônus do processo democrático, mas ao mesmo tempo um ônus para o sistema de planejamento metropolitano, que ficou prejudicado sem um modelo jurídico que permitisse melhor articulação entre o interesse regional e o interesse local.
“Exemplo disso é o aproveitamento dos recursos hídricos, que se trata de algo que tem uma função pública de interesse comum. Todo mês de janeiro enfrentamos o drama das enchentes na nossa região. O Plano Diretor de Desenvolvimento (PDUI) Integrado serve para atuar em questões como essa, assim como a promessa de despoluição da Lagoa da Pampulha. O modelo federativo precisa ser repensado juridicamente, pois da forma como o planejamento metropolitano está posto gera dependência da adesão dos municípios. O Estatuto da Metrópole de 2015 se inspirou no modelo mineiro que data de 1989 justamente porque em Minas, desde os anos 1970, já havia o entendimento de traçar um desenvolvimento regional metropolitano. Embora haja esse compromisso, a Agência da RMBH enfrenta gargalos na execução integrada de políticas de interesse comum como o transporte, o uso do solo metropolitano que é relevante em nossa atuação, proteção ambiental, habitação e mobilidade etc. As regiões metropolitanas na pratica são quase uma ficção”, afirmou Mila, que também é advogada consultora da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Para Leonardo Góes Silva, Secretário de Infraestrutura Hídrica e Saneamento (SIHS) da Bahia, os desafios em seu estado também são enormes. Embora tenham duas Regiões Metropolitanas (Salvador e Feira de Santana), a Bahia tem a maior população rural do país, com 417 municípios. “Isso dificulta também a política integrada de governança. Para se ter uma ideia 60% da água da capital vem de uma barragem, uma adutora que está fora da região metropolitana. Essa é uma politica que deve ser integrada, regionalizada para lidar com a questão hídrica e saneamento. Pensando nisso criamos aqui no estado 19 microrregiões de saneamento básico para ampliar a sustentabilidade econômico-financeira entre os municípios pertencentes aos blocos, se antecipando portanto ao Marco Legal do Saneamento que foi estabelecido em 2020”, explicou Góes.
A governança microrregional, de acordo com ele, é formada por um colegiado, que integra o governador e os prefeitos dos municípios; um comitê técnico com representantes estaduais e municipais que apreciam previamente as pautas relacionadas; um conselho participativo que elabora propostas com membros das casas legislativas locais e estadual, além de membros da sociedade civil e um secretário geral que é eleito pelo colegiado.
“Até o momento conseguimos implantar seis microrregiões. A elaboração dos planos regionais de saneamento está em andamento. Entender a forma republicana para fazer a governança e estabelecer a cooperação e consórcios públicos é importante. Precisamos criar um modelo interfederativo que agregue estudos para trabalhar de forma regional, equilibrada e atrair investimentos. Boa parte dos municípios não tem capacidade técnica e/ou financeira de promover esses estudos sozinhos e há um déficit entre a capacidade de geração de receita, tanto no abastecimento de água e esgotamento sanitário, bem como a capacidade de investimento para levar o serviço para toda população”, afirmou o Secretário.
No mesmo sentido da cooperação na gestão integrada, Andrea Azevedo, Diretora de Desenvolvimento Institucional do Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus), trouxe para o debate a sua experiência na Fundação Renova e na coordenação da reparação dos danos ambientais e sociais causados no caso da Barragem do Fundão, desastre que ocorreu em Mariana – MG em novembro 2015, quando a Mineradora Samarco foi responsável por despejar 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos nos rios da região. O trabalho envolveu dois estados (Minas Gerais e Espírito Santo), cerca de 40 municípios e outros atores públicos e privados em uma extensão territorial muito ampla.
“Governança é a chave para resolver questões complexas, mas o diálogo nem sempre é fácil. O que apresento aqui são levantamentos empíricos com base na minha vivência frente a esse processo. Quando ocorreu o vazamento a quantidade de rejeitos foi equiparada ao Corcovado no Rio de Janeiro e isso ficou nos primeiros 100 km atingindo rios que desaguam no Espírito Santo (ES), principalmente o Rio Doce, que é de responsabilidade do Governo Federal porque envolve mais de um Estado. Os rejeitos seguiram um caminho de quase 770 KM”, contou Andrea.
De acordo com ela, o cenário catastrófico encontrou um tecido social muito ramificado, com alto índice de informalidade entre os trabalhadores locais, havia uma crônica situação do mau uso dos recursos naturais na região, uma situação de conflitos históricos com as empresas mineradoras e um descrédito prévio para com o sistema político representativo da população para lidar com esses conflitos.
Em março de 2016, 4 meses depois, saiu um acordo extrajudicial (TTAc) entre as empresas Samarco, Vale, BHP e o Estado brasileiro, que configurou um sistema de governança não previsto no arcabouço jurídico até então, firmando o compromisso judicial das empresas com a reparação e compensação dos danos causados por meio de 42 programas divididos em eixos temáticos: pessoas e comunidade, terra e água, reconstrução e infraestrutura.
A interlocução ficaria a cargo de dois entes: o CIF (Comitê interfederativo composto por várias organizações federais como o IBAMA, ICMBio, ANA, Funai, DNPM, entre outras) que delibera e monitora e a Fundação Renova, um órgão privado que cumpria as deliberações do comitê executando as ações a partir de agosto de 2016, quando teve início o trabalho. O orçamento destinado às ações de compensação das empresas ficou em R$ 4,5 bilhões, já as ações de reparação não tinham um valor estimado. Em nenhum momento o TTAC envolveu os atingidos pela situação provocada pelas ações de mineração na região, ou seja, não incluiu a população dos municípios.
Em 2018, outro modelo de governança foi instituído, uma vez que o modelo inicial do TTAC não havia sido homologado pelo Ministério Público. Só a partir de então a população de atingidos foi incluída no processo instaurando um Conselho Curador, Comissões Locais com assessorias técnica e um Fórum de Observadores externos formados por sociedade civil, movimentos sociais e academia, algo que se tivesse ocorrido desde o início haveria mais clareza e construção coletiva.
“O maior aprendizado de tudo isso é que havia um conjunto expressivo de atores dos três poderes executivos envolvidos, além da sociedade civil organizada discutindo sobre os danos e a reparação do Rio Doce em suas comunidades, que teve um melhor desempenho no âmbito ambiental. Isso possibilitou a formação de um aprendizado coletivo sobre como lidar com tragédias ambientais em nosso país e sua reparação, além de entender a sua complexidade”, afirmou Andrea Azevedo.
Por outro lado, Andrea afirma que a ausência de um valor pré-determinado para ser investido nas ações de reparação fez com que houvesse muito peso nas deliberações do CIF e colaborou para que as empresas envolvidas nos danos estivessem muito mais dentro do processo dificultando e boicotando decisões importantes nesse âmbito. Além disso, perderam-se cinco anos no início com a ausência da população nos diálogos, algo que poderia ter sido evitado se eles estivessem incluídos na governança desde o princípio, o que contaminou bastante a confiança das pessoas em todo o processo de repensar o futuro e o desenvolvimento da região para os próximos anos.
Já no segundo dia de debate, durante a mesa sobre o “Estado brasileiro e Reforma Administrativa: Qualidade das políticas públicas à luz da Agenda 2030”, que ocorreu na tarde do dia 29, Sergio Andrade, Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV/EAESP), Diretor Executivo da Agenda Pública e membro do Conselho Nacional de Transparência e Combate à Corrupção defendeu que “a discussão para a agenda pública é altamente relevante”.
Para ele, a maior preocupação é a qualidade dos serviços públicos e que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é uma boa régua para entendermos a nossa realidade. “Entre narrativa e realidade há uma grande diferença. Nós temos um histórico ruim. As pesquisas de qualidade no Brasil não são um parâmetro.
O quanto sabemos da opinião dos cidadãos sobre os nossos serviços?”, questiona. Diante da pandemia e com as eleições à frente, Andrade pontua que temos um o curto período de tempo para debates sobre a agenda das cidades. “Como vamos dar conta da demanda que será crescente nos próximos anos?”. Ele acredita que este é um momento propício para entender a agenda dos ODS, por exemplo. “A discussão sobre ‘não deixar ninguém para trás’ deixou um sentido muito singelo, mas muito potente. Para mim, significa trabalho, renda e proteção social”, disse.
Ursula Dias Peres, professora Doutora da EACH/USP no Curso de Gestão de Políticas Públicas, criticou a tributação que onera a produção e o consumo e dificulta o desenvolvimento econômico e sustentável. Segundo ela, “a grande heterogeneidade dos estados e municípios brasileiros sempre implicou em volumes arrecadatórios muito desiguais e, por consequência, capacidades estatais distintas, que não têm sido corrigidas por mecanismos de equalização fiscal”.
Ela conta que “nossa legislação prevê uma série de possibilidades de construção conjunta e cooperativa de políticas”, mas que “nosso modelo federativo, baseado em impostos indiretos, faz com que estados sejam focados em arrecadação do ICMS e os municípios maiores sejam focados no ISS e isso leva uma disputa tanto entre os estados, como entre os municípios. Não é um jogo cooperativo, mas de disputa”.
Para ela, que foi Secretária Adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão do Município de São Paulo é necessário pensar um novo Pacto Federativo e ele tem que ser focado em desenvolvimento e sustentabilidade. “Para isso, a gente vai precisar revisar nosso modelo tributário e a nossa divisão de carga entre estados e municípios”, afirmou.
Daniel Mancebo, funcionário da Prefeitura do Rio de Janeiro, apresentou o processo da elaboração do Plano Diretor da cidade em 2011 e da proposta de Lei de Uso e Ocupação do Solo em 2013, do qual participou. Como aprendizado, ele afirma que é necessário uma organização da governança através da escuta, que parte da população os principais interesses.
“A gente precisa refundar os preceitos de governança pública já na nossa estrutura municipal, entre planejamento estratégico e o orçamento”, diz. E sobre a Agenda 2030, ele acredita que apesar de os municípios terem uma parte muito importante na implementação dessa Agenda, não são os únicos responsáveis por ela. “Precisamos deixar claro os objetivos e metas para a sociedade e como vamos conseguir implementá-la”.
O terceiro dia de debates discutiu a temática da “Integração de Instrumentos de Gestão”. O mediador do debate, Rodrigo Perpétuo, secretário executivo do ICLEI América do Sul, iniciou com uma provocação: “Como gerar mais apropriação da cidadania para que os processos de governança sejam mais efetivos e tenham resultados de maior impacto?”.
Ivan Carlos Maglio, pesquisador do Programa USP Cidades Globais, do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP), afirmou que é preciso pensar as cidades como centros de produção de conhecimento. Ele lembra que o Estatuto da Metrópole prevê a integração do desenvolvimento urbano, através de instrumentos como o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI). “É preciso trabalhar integradamente em escala metropolitana, traçando os interesses comuns entre os municípios. Temos hoje uma emergência climática que nos obriga a pensar em uma maneira ampla, não apenas localmente. É uma problemática que vai além da cidade”.
Maglio trabalhou na Emplasa, que durante décadas foi a principal agência de planejamento metropolitano de São Paulo, extinta em 2019. “Existe uma grande dificuldade para esses conselhos terem efetividade para a implementação de políticas”, lamenta. A
o citar o Consórcio do Grande ABC como exemplo positivo que costurou acordos intermunicipais, o pesquisador observa que esse tipo de articulação aponta para caminhos muito ricos e importantes, criando soluções baseadas na própria visão integrada entre as cidades.
“A questão climática fez surgir acordos mais recentes, buscando essas interações a partir de interesses comuns e reais. As cidades não estão preparadas para o desafio climático. É preciso criar um plano regional que articule a questão climática com o planejamento urbano”, defende.
A professora da FAU/USP e secretária executiva do Conselho Municipal de Habitação do Município de São Paulo, Luciana de Oliveira Royer, afirmou que existe uma aposta no protagonismo municipal como o centro do arranjo de governança, para que consigamos atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). “No Brasil, porém, por mais que os municípios tenham autonomia de direito, há uma desigualdade intermunicipal que é maior que a inter-regional”, aponta Royer.
“Sozinhos, municípios não têm condições de serem protagonistas nessa implementação dos ODS. É preciso articulação interfederativa para atingir essas metas”. Para ela, o orçamento federal reforça uma relação direta da União com os municípios, deixando o Estado de fora, quando ele deveria estar junto especialmente nas ações relativas ao desenvolvimento interurbano. “
Devemos focar na construção de uma governança forte, com um Estado forte que assuma a interlocução e busque ser o facilitador entre consórcios e agências”, acredita.
É evidente a necessidade de uma articulação mais vigorosa entre os diferentes níveis de governo e os municípios terem mais consciência da sua importância em relação à necessidade de cooperação entre os demais entes. A série de seminários “Pacto Federativo: Municípios para Agenda 2030” terá prosseguimento no final de outubro, com debates sobre transparência, participação ativa e cidadania.